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O QUEIJO MINAS ARTESANAL E A GEOGRAFIA: UMA RELAÇÃO INEQUÍVOCA

Por Luís Angelo dos Santos Aracri

Doutor em Geografia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro
Professor Associado do Depto. de Geociências da Universidade Federal de Juiz de Fora

Membro do projeto de extensão “Minas dos Leites Gerais: o valor dos lácteos na

alimentação, na cultura e na economia mineira” (PROEX 2020)

 

 

Muitos talvez não saibam, mas a geografia não é apenas uma disciplina escolar. Ela é também uma ciência e, como tal, está presente não somente no meio universitário, mas também, de forma aplicada, na administração pública e, em menor escala, na iniciativa privada. Mais do que elaborar e fornecer um imensurável inventário de dados e informações que revelam o que cada recanto do planeta tem de único ou diferente, o que faz com que seja frequentemente vista como uma forma “enciclopédica" de saber, a geografia busca entender de que modo o lugar onde um fenômeno ocorre é um dado fundamental na sua explicação e compreensão. Entre os geógrafos de língua inglesa, popularizou-se o termo place matters (o lugar importa), ou sua variante, space matters (o espaço importa). A segunda expressão, por sua vez, encontra-se mais próxima daquele que hoje consideramos como sendo o conceito-chave central da geografia, o conceito de espaço geográfico, que tomou o lugar do que os geógrafos do passado chamavam de “superfície terrestre”, que nada mais era do que a crosta do planeta Terra em toda a sua diversidade natural e social. Logo, a matéria sobre a qual trabalham os geógrafos, quer se chame superfície terrestre ou espaço geográfico, é um híbrido: ela é resultado do encontro da história do planeta com a história das coletividades. É natureza e sociedade amalgamados pelo trabalho do homem.

O espaço geógrafico, segundo o saudoso geógrafo e professor Milton Santos (1926-2001), é o “espaço banal”, isto é, o espaço de todos “quadros naturais”, de todos os homens, de todas as instituições, de todas as empresas, de todas as classes sociais etc. Ele é um mosaico, em permanente (re)construção, de paisagens, lugares, territórios e regiões. Suas feições e arranjos mudam ao sabor da sucessão de períodos históricos, das correntes migratórias, das trocas comerciais, das disputas e conflitos sociais… Cada parcela do espaço geográfico (ou superficie terrestre, se assim preferir…) é diferente de qualquer outra porque representa a coexistência e a simultaneidade de elementos de múltiplas origens, tanto geográficas quanto históricas: técnicas e tecnologias, atividades econômicas, tradições culturais, saberes e conhecimentos etc. Foi Milton Santos quem também disse que tudo o que já está "morto" (aqui no sentido de passado ou superado) enquanto tempo está ainda vivo como espaço. Mas você deve estar se perguntando agora: o que tudo isso tem a ver com o Queijo Minas Artesanal afinal?

Tem tudo a ver. Quem já não ouviu falar no queijo da Serra da Canastra, ou no queijo Araxá? Não estamos falando apenas de meras toponímias que pura e simplesmente emprestam a essas iguarias o nome de suas regiões de origem - na verdade é muito mais do que isso. Sobre o território de Minas Gerais foram identificadas e demarcadas regiões produtoras de queijos artesanais que se distinguem entre si não apenas pelas diferenças nas características sensoriais do alimento, mas também por causa de uma combinação única entre essas características e fatores naturais, como clima, altitude e solo, além da história do lugar e de suas tradições culturais. Identificar e delimitar regiões, isto é, dar visibilidade ao que torna cada lugar diferente de qualquer outro, está no DNA da geografia desde sua institucionalização como disciplina científica em meados do século XIX.

De acordo com o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), o Queijo Minas Artesanal se caracteriza basicamente pela utilização do leite cru e do pingo, um fermento lácteo natural recolhido do soro extraído no próprio processo de fabricação do queijo. Por sua vez, as propriedades microbiológicas do pingo podem variar de acordo com a influência dos condicionantes edafoclimáticos já mencionados (relevo, clima etc). Além disso, cada região produtora de queijo artesanal detém um modo próprio de fazer, que se expressa por meio de formas distintas de manipulação do leite e dos fermentos, e, também, de maneiras próprias de prensar e “curar" (maturar) o produto. Os modos de fazer são, em grande medida, transmitidos de uma geração para a outra, sendo que a origem provável desses saberes remonta ao povoamento dessas regiões durante o “ciclo do ouro” entre os séculos XVII e XVIII. Por essa razão, o Queijo Minas Artesanal é, desde 2008, considerado “patrimônio imaterial brasileiro” pelo IPHAN. Além disso, dois queijos artesanais mineiros, o da Serra da Canastra e o da região do Serro, possuem também o registro de Indicação Geográfica (IG) na modalidade “indicação de procedência”. Esse registro é concedido pelo Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI) a produtos portadores de características singulares de seu local de origem que os tornam únicos. Em tempos novas formas de concorrência comercial que não limitam apenas aos preços, há uma intensa disputa por mercados entre produtos que incorporam características locais. Devido à elevada exigência desses mercados com relação não apenas à identidade mas também à qualidade desses produtos, os queijos que detém selos de Indicação Geográfica são comercialmente mais competitivos, e, dessa maneira, podem vir a contribuir tanto com o desenvolvimento das economias regionais quanto com a diversificação da pauta das exportações nacionais.

A relação entre os fatores naturais e os de origem histórico-cultural e as características sensoriais dos queijos artesanais é bastante complexa. Tomemos como exemplo o chamado “Queijo Canastra”, um dos mais conhecidos e populares: recebem essa denominação os queijos produzidos de maneira artesanal por produtores situados nos limites do Parque Nacional da Serra da Canastra (que abrange, ao todo, sete municípios) e em suas proximidades, sendo que a área efetiva do parque é de mais de 70 mil hectares (embora tivesse sido previsto com uma área inicial de pouco mais de 190 mil) e sua topografia varia entre 630 e 1500m de altitude. Segundo um estudo realizado em 2011 por pesquisadores do Instituto de Ciências Biológicas e da Escola de Veterinária da UFMG, a altitude na qual se encontram situadas as queijarias artesanais influencia diretamente as populações de bactérias láticas acidificantes, isto é, aquelas que produzem um número significativo de enzimas que transformam os nutrientes do leite e do queijo em compostos propiciadores de propriedades sensoriais consideradas desejáveis (que no caso do Canastra são a cor amarelada e o sabor forte e levemente picante).

Com relação aos componentes histórico-culturais envolvidos na sua produção, destacam-se, em primeiro lugar, o fato dele ser uma espécie de “descendente" de um outro tipo de queijo, o chamado “Queijo São Jorge”, cujo modo de fazer foi trazido por imigrantes portugueses oriundos da região dos Açores durante o ciclo do ouro. Além disso, no passado o tempo de maturação do queijo da Serra da Canastra era diretamente influenciado pelas condições de transporte disponíveis: tendo em vista de que eram transportados em carros de boi e lombos de burro, os queijos chegavam a ficar armazenados por quarenta dias nas prateleiras das chamadas “casas de queijo” antes de serem distribuídos. Dessa forma, adquiriam a coloração dourada e a famosa “casca”, que é resultado de um processo de desidratação de fora para dentro.

As diferenças regionais e sua relação com a produção de lácteos, incluindo os queijos, abrangem também o sistema de produção adotado pelos produtores, bem como o tipo (raça e mestiçagem) de gado leiteiro utilizado. Um conceito clássico da geografia empregado em seus estudos sobre os espaços agrários é o de “sistemas agrícolas”, que permite distinguir e classificar as paisagens rurais de acordo com dois sistemas básicos de produção, o extensivo e o intensivo. Em se tratando de queijos artesanais, via de regra produzidos em estabelecimentos da agricultura familiar, tem-se a prevalência do sistema extensivo, ou seja, aquele no qual os animais são criados soltos no pasto para que caminhem até o alimento. Nesse caso, as raças de maior conveniência são as de animais de porte mediano, que embora tendam a produzir menos leite que as vacas criadas no sistema intensivo (no qual o gado é submetido a um confinamento), conseguem resistir melhor às adversidades climáticas e aos erros de manejo, além de possuírem maior rusticidade. Alguns especialistas em queijos artesanais franceses, como o jornalista Arnaud Sperat-Czar, afirmam de que é verdadeira a tese de que existe uma conexão entre a raça das vacas e o sabor dos queijos. Em seu livro Os queijos de leite cru (Editora Sertão Brás, 2012, 75 páginas), Sperat-Czar afirma que a composição do leite é diferente de uma raça para outra. Ele cita a raça Tarentaise, usada na produção do chamado queijo beaufort, que tem um sabor mais picante que os queijos fabricados a partir do leite de animais de outras raças.

Voltando ao exemplo do queijo artesanal da Serra da Canastra, originalmente o gado leiteiro utilizado na região era do da raça caracu, desenvolvida durante o Período Colonial e que é descendente de espécies portuguesas que foram cruzadas com espécies holandesas e até mesmo africanas. Como podemos observar, a imigração portuguesa nos tempos do Brasil-colônia não trouxe com ela apenas os modos de fazer, mas também espécies animais exógenas, mas ambos tiveram que se adaptar às novas condições existentes no território colonial, o que explica porque os queijos artesanais produzidos em Minas Gerais diferem de seus “ancestrais” portugueses. É óbvio que, de lá para cá, muita coisa mudou. No caso do “Queijo Canastra”, tem-se utilizado hoje em dia as raças de origem europeia, como a holandesa, e cada vez mais pastagens formadas no lugar das nativas, com preferência pelo plantio de gramíneas mais bem adequadas à dieta de rebanhos melhorados geneticamente para a obtenção de uma maior produtividade do leite. Essas “permutas" entre fatores empregados no processo produtivo do queijo artesanal pode, num primeiro momento, parecer estranha e soar para o leitor como uma “descaracterização” daquilo que lhe confere identidade. Não é bem assim. O já mencionado Arnaud Sperat-Czar responde a esse questionamento da seguinte maneira: os avanços tecnológicos recentes permitem que alguns elementos da sociobiodiversidade das regiões produtoras possam, sim, ser substituídos sem que isso afete as características sensoriais de cada queijo, preservando dessa forma o que eles têm de único. Trata-se de uma questão de adequação da produção dos queijos artesanais aos parâmetros atuais de custos, produtividade e qualidade (incluindo sanitária) estabelecidos pelo mercado.

Além da Serra da Canastra, existem outras sete regiões produtoras de Queijo Minas Artesanal: Cerrado Mineiro, Triângulo Mineiro, Serra do Salitre, Araxá, Serro, Campos das Vertentes e Serra da Ibitipoca. De acordo com a Secretaria de Agricultura, Pecuária e Abastecimento de Minas Gerais (SEAPA-MG), apesar de utilizarem fermento em vez de pingo e de haver aquecimento durante a produção, os queijos da Mantiqueira de Minas também são considerados artesanais devido ao emprego do leite cru, à baixa escala de produção, ao emprego de mão-de-obra familiar e ao modo de fazer local com origens em uma corrente migratória proveniente da Itália no início do século XX. A identificação, delimitação e reconhecimento dessas regiões são operações de responsabilidade do Instituto Mineiro de Agropecuária (IMA) e da Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural do Estado de Minas Gerais (Emater-MG), ambas vinculadas à SEAPA-MG. Juntas, essas regiões detém cerca de 27% da produção nacional de queijos artesanais.

Para concluirmos, voltemos à geografia: importa então onde os queijos são feitos? Após essa breve exposição, podemos dizer que a resposta é sim. Nesse sentido, o queijo artesanal pode ser considerado uma entre tantas outras expressões da diversidade natural e social que configura a superfície do nosso planeta, da conjunção e indissociabilidade entre o que nos foi dado pela natureza - nossa biogeodiversidade - e a cultura, da circulação de pessoas pelo mundo e do intercâmbio entre os lugares. Sendo a geografia uma ciência que também tenta encontrar explicações para os diversos mecanismos de valorização (e apropriação) das diferenças locais e regionais, está claro de que estamos falando de uma disciplina que, em um contexto em que indicações de procedência e denominações de origem foram convertidas em vantagens competitivas, se transforma, ela própria, num instrumento dessa valorização.

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